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sexta-feira, 8 de março de 2019

sobrevivências

Só sei mesmo o que ela me contou. Foi pouco e o resto foi dedução.
Então em algum momento do início do século passado, tendo conseguido fugir dos pogroms na Polônia e na Rússia, e possivelmente pelo intermédio do casamenteiro, casaram-se em Paris dois sobreviventes da intolerância; não tiveram filho varão mas sim duas meninas que crescendo entraram para a indústria do couro, tido como mais limpa (um pouco) do que o ofício de sapateiro remendão que era do pai.
Mas veio a invasão alemã da França e vieram as leis discriminatórias. Além da estrela amarela que elas tinham de usar, todos os judeus não franceses deviam ser deportados. Essa parte ela não contava, mas se o casal e a tia sobreviveram é porque não apenas os vizinhos católicos não denunciaram como as duas moças alimentaram os três com as próprias e minguadas rações. Rações de tempo de guerra para duas pessoas e essas judias, para que cinco comessem.
Em 1942 foram avisadas pela vizinha mais chegada que era para se esconder imediatamente, num corredor embutido atrás de armário que já estava preparado. Pois acabava de começar a "rafle du Vel´d´Hiv´", Vélodrome d´Hiver, demolido depois da guerra por ter servido de depósito transitório de judeus franceses rumo aos campos de extermínio.
Até Paris ser liberada em maio de 44 pelas tropas norte-americanas, os cinco viveram ali dentro, sem dúvida colaborando com muito remendo em sapato alheio, e sem que nenhum outro vizinho denunciasse a presença deles. A coragem dos moradores da Escada X do prédio da rua de Ménilmontant, ladeira tradicional em bairro popular, protegeu a família por cerca de dois anos e pormenores práticos podem ser intuídos.
Depois da guerra foi casada por breve tempo com outro sobrevivente, que fugira a pé da Bessarábia deixando para trás a vida antiga. O ditador da Romênia tinha simpatias pro-nazistas e o moço imaginava sem dúvida que a Zona Livre francesa o acolheria. Ao chegar no que já fora anexado igualmente, onde vigiam agora as mesmas leis que em Paris, após peripécias que ela não queria saber de contar embora devia ter ouvido, teve a sorte de ser achado primeiro pela Resistência francesa e não pelos nazistas. Como todo judeu culto da Europa central, falava francês fluente.
Se caísse seria fuzilado como resistente em vez de ser deportado. Mas não caiu e casou-se com a moça do armário meses depois do fim da guerra.
Essa moça, agora anciã, deixando filho e netos, acaba de fechar os olhos, como o ex-cidadão romeno também fechou há tempos. Sobreviventes.
Salve a resistência de quem preferiu a vida.



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